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Carta aberta a Marcia Tiburi

Marcinha,

Não nos conhecemos. Até a semana passada, nunca tinha ouvido falar de você – e você certamente morrerá sem saber que eu existo. A despropositada intimidade do diminutivo (não vai aí nenhum machismo ou paternalismo) é porque fui tomado de intensa ternura nas três oportunidades em que sua existência cruzou com a minha.

A primeira, num evento de apoio ao ex-presidente Lula, aqui no Rio, durante o qual você disse que “o STF é uma bosta, epistemologicamente falando”. Admirei sua coragem de dizer isso diante de quem nomeou três dos onze membros da corte, e que esteve por trás da nomeação de outros quatro (através de interposta pessoa, a ex-presidenta). Você disse, na cara do homenageado, que 63,636363% de uma bosta epistemológica são obra dele. Oigalê!

A segunda foi ontem, quando assisti a um vídeo em que você – autora de um livro provocativamente intitulado “Como Conversar com um Fascista” – se recusa a conversar com um “fascista”. O episódio me lembrou o ex presidente Fernando Henrique, aquele do “esqueçam o que escrevi”.

A terceira acaba de acontecer, ao ler sua missiva ao radialista que propôs o frustrado debate entre você (a progressista) e um… “fascista”.

Você diz que gosta de conversar “com quem apresente argumentos consistentes”. Que argumentos consistentes você teria a apresentar na defesa de um réu condenado em primeira e segunda instâncias, num processo legal em que houve amplo direito de defesa (e direito, inclusive, de questionar as provas, as leis, o juiz, o sistema jurídico)?

Não é seu dever “resistir ao pensamento autoritário, superficial e protofascista”? Como resistir se você foge ao debate – e debates, nas suas próprias palavras, “desvelam divergências teóricas ou ideológicas podem nos ajudar a melhorar nossos olhares sobre o mundo”?

Você diz “lutar contra o empobrecimento da linguagem, a demonização de pessoas, os discursos vazios, a transformação da informação em mercadoria espetacularizada, os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria dos programas nos meios de comunicação de massa.” Quer show de horrores maior que abandonar um debate antes mesmo que ele se inicie – ou seja, com base exclusivamente em ideias preconcebidas (em preconceitos) sobre o seu interlocutor? Quer empobrecimento maior da linguagem e discurso mais vazio que esse de recusar o contraditório, virar a cara, dar as costas, bater a porta e ir embora?

Não é a primeira vez (e não será a última) que você faz isso – e diz que o faz por “uma questão de coerência”, pelo “direito de não legitimar como interlocutor pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e outros preconceitos introjetados em parcela da população”. Se são esses os seus critérios para “legitimar” interlocutores, como é que confabula tanto com quem se especializou em manipular informação, explorar a ignorância, incentivar o racismo, instrumentalizar o sexismo?

Você diz que teve medo de, “após o golpe midiático-empresarial-judicial”, não existir mais “espaço para debater ideias”. Que golpe, minha filha? Golpe foi a derrubada de Pedro II, de Júlio Prestes, de Getúlio Vargas, de João Goulart. Golpe é quebra da ordem institucional – e olha nós aqui, com a mesma constituição, o mesmo Congresso, governados pelo vice no qual você votou, pelo vice que você elegeu.

Há espaço para debater ideias: você foi convidada para um deles, e amarelou. Aceitou “debater ideias” quando estava diante apenas dos que defendem as mesmas ideias que você, no evento pró-Lula. Aí, até eu, que não sou filósofo.

Você afirma que o julgamento por um tribunal legalmente constituído, em pleno estado de direito, é “uma violação explícita da Constituição da República”, “uma profunda injustiça”. O que é um julgamento justo, na sua opinião? Aquele em que o seu lado sempre vence? Talvez você não saiba, mas nesse mesmo julgamento o seu réu de estimação foi absolvido de outras acusações. Nestes casos a Constituição da República foi violada também?

Ok, seu argumento para não debater era que este seria um daqueles casos em que “argumentos perdem sentido diante de um já conhecido discurso pronto”. Este não poderia ser exatamente o argumento do outro lado para não debater com você? Não poderia também seu oponente alegar que o seu campo ideológico está repleto de “conhecidos psicóticos”, que investem em “produzir confusão a partir de ideias vazias, chavões, estereótipos ideológicos, mistificações, apologia ao autoritarismo e outros recursos retóricos que levam ao vazio do pensamento”. Freud disse que “quando Pedro me fala de João, sei mais de Pedro do que de João”. Quando Márcia fala de Kim…

“Creio que é importante chamar ao debate e ao diálogo qualquer cidadão que possa contribuir com ideias e reflexões, e para isso não se pode apostar em indivíduos que se notabilizaram por violentar a inteligência e a cultura, sem qualificação alguma, que mistificam a partir de clichês e polarizações sem nenhum fundamento. O discurso que leva ao fascismo precisa ser interrompido. Existem limites intransponíveis, sob pena de, disfarçado de democratização, os meios de comunicação contribuírem ainda mais para destruir o que resta da democracia.” Quem disse isso foi você, mas ficaria ainda melhor, e faria muito mais sentido, na voz do Kim.

Você encerra sua carta pontificando: “O detentor da personalidade autoritária, fechado para o outro e com suas certezas delirantes, chama de diálogo ao que é monólogo.” Acho perfeito. Eu assinaria embaixo, sem pestanejar. Pena que você, com sua personalidade autoritária, fechada para o outro e com suas certezas delirantes, só aceite o diálogo quando ele é monólogo.

Aguardo, ansioso, seus debates com o Duvivier, a Taís, o Boulos, a Gleisi, a Tássia, o Sibá, o Lindinho, o Zanin.

P.S. Sei que, no campo ideológico no qual você milita, a língua é considerada um instrumento de opressão – por isso vocês insistem tanto em oprimir a gramática. Mas como você é filósofa, professora, e muita gente deve ler o que escreve, aceite estes pequenos reparos como parte da minha luta pessoal “contra o empobrecimento da linguagem”:

1. “Por o mundo está lotado de canalhas”. Tudo bem que a Globo tenha institucionalizado a apócope do R nos verbos no infinitivo, mas acho que é só na fala, não na escrita. Escreva “Por o mundo estaR lotado de canalhas” – ou “Porque o mundo está lotado de canalhas”. Vai ficá bem melhó.

2. “…os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria”. Filósofos/as/xs costumam dar mais atenção a falácias que a silepses. “A maioria” é singular; logo, o verbo fica no singular também: “os shows de horrores em que se TRANSFORMOU a maioria” (“a maioria se transformou”, não “a maioria se transformaram”). A gente podemos não concordar em nada, mas deixemos a concordância verbal fora disso.

3. “Tenho o direito de não legitimar como interlocutor pessoas…”. Pode ser frescura minha, mas “uma pessoa” é interlocutor / interlocutora / interlocutxr. Se são “as pessoas”, então teremos “interlocutores / interlocutoras / interlocutorxs”.

4. “Tu, a quem tenho muita consideração, não me avisou do meu interlocutor”. Não vou corrigir, em respeito aos amigos gaúchos que devem falar assim. Tu pode ter consideração a quem tu quisé – mas bah, tchê, ler isso foi mais difícil que nadar de poncho.

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