O governo anunciou nesta quarta-feira (23) que deseja privatizar a Casa da Moeda, estatal responsável por confeccionar notas de real, passaportes, selos postais e diplomas, entre outros produtos.
Tão logo a medida foi anunciada, começou a guerra de informações nas redes sociais. Uns defendendo a manutenção da empresa como estatal em nome da “soberania nacional”, outros afirmando que a privatização irá impedir que o governo brasileiro “imprima dinheiro”. E ambas as informações falsas.
Você sabia que o principal produto da Casa da Moeda não é a moeda? E a emissão de moeda, será que ela depende da fabricação ser estatal ou privada? Seria a privatização da Casa da Moeda uma ameaça à “soberania nacional”? Existem empresas privadas que fazem os mesmos serviços de forma mais eficiente?
Respondemos essas e outras perguntas para você saber tudo sobre a Casa da Moeda e sua privatização.
1. O que é a Casa da Moeda?
A Casa da Moeda do Brasil é uma empresa estatal vinculada ao Ministério da Fazenda. Foi fundada em 8 de março de 1694, pelo Dom Pedro II de Portugal, para fabricar moedas com o ouro proveniente da mineração. No ano seguinte, começaram a ser produzidas as primeiras moedas, substituindo a livre circulação de moedas estrangeiras que existia no Brasil até então.
A estrutura formal atual da empresa, ex-autarquia, foi criada durante a ditadura militar pela Lei nº 5.895, de 19 de junho de 1973. A mesma lei também definiu que a empresa estatal tem o monopólio da emissão de papel-moeda, moeda metálica, selos postais, moedas comemorativas e cadernetas de passaporte, e uma lei posterior ampliou esse monopólio para a emissão de selos de controle fiscal de cigarros (arts. 27 a 30 da Lei nº 11.488, de 15 de junho de 2007) e bebidas (extinto em 2016). A empresa também pode fabricar bilhetes magnetizados, diplomas, certificados e outros impressos, além de produtos e serviços de fundição como medalhas e condecorações.
Com relação à estrutura operacional, a Casa da Moeda do Brasil possui um complexo industrial, inaugurado em 1984, no Distrito Industrial de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Essas instalações ocupam aproximadamente 120 mil m² de área construída em um terreno de cerca de 500 mil m². Neste complexo estão instaladas as fábricas de cédulas, moedas e medalhas, de impressos e de passaportes.
2. O principal produto da Casa da Moeda não é a moeda
Como qualquer outra empresa, a Casa da Moeda do Brasil (CMB) recebe pagamento pelos serviços prestados, inclusive do governo brasileiro que a controla. Os principais clientes da CMB são Banco Central do Brasil (BCB), Receita Federal do Brasil (RFB), Departamento de Polícia Federal (DPF), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).
De acordo com o fluxo de caixa da CMB, a empresa obteve um lucro líquido operacional de R$ 60 milhões em 2016. No mesmo ano, a CMB obteve uma receita bruta operacional de R$ 2,4 bilhões, sendo 75% dela obtida pela impressão dos selos de rastreamento fiscal e fornecimento de equipamentos relacionados para os setores de cigarros (Scorpios) e bebidas (Sicobe) sob controle da Receita Federal (R$ 1,65 bilhões no total), enquanto a impressão de moedas nacionais (R$ 223 milhões), cunhagem de moedas nacionais (R$ 126 milhões) e a impressão dos passaportes brasileiros (R$ 108,7 milhões) representaram a menor parte do faturamento da empresa.
A Casa da Moeda do Brasil também forma, com a Sociedad Del Estado de la Casa de la Moneda – SECM, da Argentina, a União Transitória de Empresas – UTE, para fornecer cédulas ao Banco Central de la Republica Argentina – BCRA. Em 2016, a CMB faturou 9,9 milhões de dólares com o serviço.
3. Fabricação de moeda é diferente de emissão de moeda
A fabricação não se confunde com emissão de moeda. A fabricação é um processo industrial que compreende a confecção da peça de papel ou de metal que servirá de meio de pagamento de obrigações, enquanto a emissão é um processo econômico e jurídico que se dá mediante a colocação de moeda em circulação. Isso pode ser feito por
emissão física (ou seja, mediante a distribuição do numerário necessário para os pagamentos em espécie) ou mediante emissão escritural (na forma de operações de crédito do Banco Central com as instituições financeiras ou destas com seus clientes).
A fabricação, por si só, não produz efeito jurídico ou econômico. Até que as cédulas ou moedas metálicas produzidas sejam colocadas em circulação pela autoridade monetária (em geral, o Banco Central), elas não possuem valor monetário. São apenas papel pintado ou moeda cunhada. É com a emissão que elas passam a integrar o sistema monetário, constituindo o chamado meio circulante. No Brasil, a competência para emissão de moeda é da União, sendo exercida com exclusividade pelo Banco Central do Brasil (BCB), conforme determina o art. 164 da Constituição.
Em outras palavras, a eventual privatização da Casa da Moeda não é uma “ameaça à soberania nacional”. O governo pode continuar emitindo moeda e, quando desejar fazer a impressão de papel-moeda ou cunhagem de moedas, poderá contratá-las da Casa da Moeda privada ou, idealmente, de qualquer outra empresa gráfica que preste o serviço.
4. Importar papel-moeda não é uma “ameaça à soberania nacional” e o Brasil já o fez
Em 15 de setembro de 2016, foi editada a Medida Provisória nº 745, que “autoriza o Banco Central do Brasil a adquirir papel-moeda e moeda metálica fabricados fora do País por fornecedor estrangeiro”. Na exposição de motivos que a acompanhou, a adoção da MP foi justificada à vista da “incerteza quanto ao cumprimento, no exercício de 2016, das metas de produção de numerário”, as quais são estabelecidas em contrato firmado entre o Banco Central do Brasil (BCB) e a Casa da Moeda do Brasil (CMB).
A referida Medida Provisória, que foi posteriormente convertida na Lei nº 13.416, de 23 de fevereiro de 2017, trouxe inovações importantes na sistemática de provimento de papel-moeda e moeda metálica no Brasil, que conferem ao Banco Central maior margem de manobra em cenários de contingência no provimento de numerário.
Como resultado da nova lei, o Brasil importou moeda fabricada pela empresa privada Crane AB, sediada na Suécia, pagando R$ 20,2 milhões por 100 milhões de cédulas de 2 reais. Detalhe: cada mil cédulas de 2 reais custou R$ 202,05, um valor 17% menor que os R$ 242,73 pagos à Casa da Moeda por produzir o mesmo milheiro em Santa Cruz, no subúrbio do Rio de Janeiro (para identificar se uma nota de 2 reais é sueca, repare nas letras antes do número de identificação da nota, em cima ou embaixo do desenho da tartaruga: se estiver escrito “DZ”, ela foi fabricada na Suécia).
E essa não foi a primeira vez que o Brasil importou dinheiro. Em 1994, o Banco Central teve de comprar notas de fornecedores estrangeiros para trocar os cruzeiros reais pelos reais. Além disso, até a década de 1960, as cédulas brasileiras também eram impressas no exterior – o governo brasileiro não é obrigado a comprar papel-moeda e moedas apenas da CMB. E a “soberania nacional” continuou existindo.
5. Até a Venezuela já comprou papel-moeda impresso por empresas privadas
Sendo a Casa da Moeda nada mais do que uma gráfica de luxo, a fabricação de papel-moeda não é algo impossível de ser feita pela iniciativa privada. Pelo contrário, diversos países contratam empresas privadas para a impressão de papel-moeda, como mostra um estudo feito pela Câmara dos Deputados.
No Canadá, as cédulas são fabricadas pela Canadian Bank Note Company Ltd, uma empresa privada situada em Ottawa. O Reino Unido terceiriza, desde 2003, toda a produção de numerário para a De La Rue, com sede em Essex, na Inglaterra. A Suíça contrata a produção de cédulas com empresas privadas desde 1907, e desde 1976 todas as séries de notas fabricadas são contratadas com a empresa suíça Orell Füssli Security Printing Ltd. A Nova Zelândia terceiriza toda a fabricação de cédulas para a Canadian Bank Note Company desde 2015 e a primeira impressão de papel-moeda do país, feita em 1° de agosto de 1934, foi contratada junto à De La Rue. E a Suécia decidiu adquirir novas notas de papel-moeda junto à Crane AB, também sueca – a mesma empresa que efetuou a venda de reais para o Brasil em abril desse ano.
Esse processo também acontece na América Latina. Bolívia, Chile, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai contratam empresas privadas, mediante processo de licitação, para impressão de cédulas. Na Costa Rica, o processo é feito totalmente por empresas privadas. Equador, El Salvador e até mesmo a socialista Venezuela importam de empresas privadas do exterior, especialmente da De La Rue, a maior empresa do ramo no mundo.
6. De La Rue, a “Casa da Moeda” privada
Uma empresa merece um capítulo a parte sobre a questão da fabricação privada de papel-moeda e moedas: a inglesa De La Rue, a principal empresa do setor no mundo. Fabricando papel-moeda desde 1860, a empresa privada até mesmo se adapta às demandas dos governos nacionais para fornecer numerário quando necessário: possui uma joint venture com o governo de Sri Lanka desde 1986 e a produção feita localmente de papel-moeda em Malta e no Quênia.
Os serviços da De La Rue, entretanto, não se limitam ao papel-moeda. A empresa fornece, por ano, mais de 22 milhões de documentos de registro civil (como a certidão de nascimento), documentos de identificação – RG, passaporte, carteiras de motorista, vistos de permanência e cartões de votação – para mais de 25 países, incluindo Malta, Reino Unido, Senegal, Serra Leoa e Trinidad e Tobago, todos personalizados de acordo com as demandas dos clientes locais. Serviços como controle fiscal de tabaco e bebidas – a principal fonte de receita da CMB – também são prestados pela De La Rue.
Entre as contribuições da De La Rue para a história da humanidade (a empresa existe há mais de 200 anos) estão o fornecimento de papel-moeda para mais de 150 países diferentes, incluindo a impressão do cruzeiro antigo (entre 1950 e 1967) e o cruzeiro novo (entre 1967 e 1970) brasileiros; a criação do design das cartas de baralho (em 1832) como as conhecemos hoje e a criação do primeiro caixa eletrônico do mundo, para o banco britânico Barclays, inaugurado em 27 de junho de 1967.
7. Não há motivo para a Casa da Moeda continuar sendo estatal
A principal fonte de recursos da CMB – a fiscalização fiscal dos sistemas Sicobe (bebidas) e Scorpios (cigarros) – ficou abaixo do volume estimado originalmente para 2016. A queda no consumo de produtos de tabaco leva, obviamente, a uma redução na demanda pelo controle fiscal. No setor de bebidas, então, uma medida da Receita Federal foi uma péssima notícia para a CMB: desde outubro de 2016, um ato declaratório desobriga os estabelecimentos industriais envasadores de bebida da utilização do Sicobe, ou seja, não há mais a necessidade de utilizar os serviços fornecidos pela CMB nesse setor.
Com relação à impressão de papel-moeda e cunhagem de moedas nacionais, segundo a própria CMB, foram fabricadas 1,05 bilhão de cédulas e 600 milhões de moedas de real em 2016, uma programação que só foi cumprida depois que a estatal conseguiu obter manutenção para as suas máquinas fabricadas na Alemanha. A título de comparação, em 2011 a empresa havia produzido 2,47 bilhões de cédulas, mostrando que a maior utilização de meios eletrônicos de pagamento reduziu a demanda por numerário físico. Lembrando que, conforme mencionado anteriormente, o custo de fabricação de papel-moeda do real na Suécia, importado em abril deste ano, foi 17% inferior ao da CMB sediada no Rio de Janeiro.
Por fim, com relação aos passaportes, a demanda por eles está estável desde 2014 (na casa de 2,2 milhões de unidades por ano). Conforme a própria CMB, com a produção dos passaportes válidos por 10 anos desde julho de 2015, é esperada uma redução significativa da demanda a partir do ano 2020, quando se encerrará a substituição dos modelos válidos por cinco anos pelos novos passaportes.
Em resumo, a Casa da Moeda do Brasil presta serviços que podem perfeitamente ser realizados pela iniciativa privada: 75% de seu faturamento vem da impressão de selos de controle fiscal e fornecimento de sistemas relacionados, passíveis de fornecimento por qualquer empresa; a impressão de papel-moeda e cunhagem de moedas é um serviço demandando por diversos países junto a empresas privadas como Crane AB e De La Rue; e a impressão de passaportes é igualmente fornecida pelas mesmas empresas.
Além disso, a CMB enfrenta, conforme mencionado em seu último relatório de gestão, problemas típicos de estatais: a burocrática legislação brasileira influencia o tempo de aquisição – que pode levar até seis meses – de insumos e equipamentos necessários ao cumprimento dos contratos e, por consequência, os prazos de entrega dos produtos. Além, é claro, da corrupção: um esquema de fraudes na estatal, com propinas de até 100 milhões de reais, foi desarticulado pela Polícia Federal em 2015.
Isso torna praticamente impossível que a empresa concorra no mercado internacional contra empresas privadas que prestam serviços dentro do prazo e com custos inferiores. Como exemplo, a CMB tentou participar da licitação internacional para fornecimento de 578 milhões de moedas para o Banco da República da Colômbia e 900 milhões de cédulas para o Banco Central da Venezuela, mas não conseguiu cumprir todos os requisitos estabelecidos nos editais. Sim: os serviços da CMB não atendem os critérios mínimos de contratação nem da ditadura socialista venezuelana.
Em pleno 2017, não faz o menor sentido que o governo mantenha uma gráfica de luxo estatal para prestar serviços que a iniciativa privada faz de forma tão mais eficiente que consegue entregar com menores custos mesmo estando em outro país. A Casa da Moeda não apenas deve ser privatizada, como a prestação dos serviços deve ser contratada junto a diversas empresas, nacionais e internacionais, em ampla concorrência, extinguindo o monopólio da Casa da Moeda.
A Casa da Moeda deve ser privatizada e os mercados onde ela atua devem ser abertos à concorrência internacional. Pelo bem das células e moedas dos pagadores de impostos que financiam o estado brasileiro.