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Como o estado levou o cinema brasileiro ao fracasso e matou a iniciativa privada no setor

Que tal uma legislação de reserva de mercado para o Cinema Nacional? Diante de tantos filmes estrangeiros – especialmente norte-americanos – que chegam ao mercado interno todos os anos, deve ser uma “boa ideia” obrigar que uma parcela da programação das salas de cinema ofereça o “similar nacional”.

Você deve estar pensando: “Bem, isto já existe, desde o tempo da Embrafilme, no regime militar”. Sim, isto já existe: você só errou a data. A ideia de “proteger” o conteúdo nacional da concorrência estrangeira vem desde Getúlio Vargas, em 1932, com o artigo 13 do decreto Nº 21.240.

Bem, e que tal injetar dinheiro público nos filmes? Quanto tempo tem essa ideia? Ela também é muito antiga: em 1953, por exemplo, a célebre companhia produtora Vera Cruz estava atolada em dívidas, mas ainda assim a imprensa defendia que o Governo de SP (através do Banespa, na época um banco estatal paulista) “salvasse” a empresa com mais empréstimos em condições vantajosas – o que se revelaria, no final das contas, um desperdício.

Muita gente esforça-se para tentar compreender por que a indústria cinematográfica brasileira vive essa eterna novela na qual os capítulos parecem repetir sempre o mesmo drama. Mas o problema é efetivamente mais simples de ser entendido se assumirmos que, entra governo e sai governo, as tais “políticas públicas” para o setor continuam usando o mesmo remédio esperando, eventualmente, atingir resultados diferentes.

Desde meados do século passado, dois fantasmas assombram o audiovisual nacional: a reserva de mercado e o subsídio (em seus infinitos disfarces e variações). Tais fantasmas, a despeito de sua natureza, são usados como verdadeiros pilares para a indústria do setor. Vejamos, assumindo como ponto de partida a criação da Embrafilme (em 1969), embora como se disse o problema (e a falsa solução) seja anterior a isso.

Durante toda a existência da estatal criada pelos militares para produzir e distribuir filmes nacionais, a reserva de mercado acentuou-se e centenas de produções foram levantadas com dinheiro público. Depois de uma década desse modelo, o que se conseguiu foram basicamente duas coisas: uma diminuição expressiva do número de salas de cinema abertas e um cinema dividido – de um lado, os filmes dependentes da Embrafilme, que representavam menos de um terço da bilheteria da parcela destinada ao produto nacional; de outro, os filmes livres de dinheiro público, a indústria paulista da pornochanchada e do cinema de gênero da chamada “Boca do Lixo”. Ou seja: a despeito da imensa injeção de verba estatal no cinema, a parte da indústria que realmente prosperava era aquela esquecida pelos burocratas (os dois terços de venturosos capitalistas). Mas qual seria a explicação para esse fenômeno, uma vez que mesmo entre os títulos financiados pela Embrafilme havia grandes sucessos de bilheteria, como o célebre “Dona Flor e seus dois maridos”? Espere, voltaremos ao tema mais adiante.

Quando o modelo da estatal exauriu-se, havia um consenso de que algo precisava mudar. Não é verdade que o corajoso Ipojuca Pontes, o homem incumbido por Fernando Collor para privatizar o Cinema Nacional, agiu à revelia da comunidade: o que os cineastas não queriam era ficar órfãos, mas a Embrafilme era uma herança indigesta inclusive para eles, após anos de crescente desprestígio perante a opinião pública.

Depois do desastre generalizado da administração Collor, inicia-se um novo ciclo: em vez de aprender com a experiência de negócios dos cineastas (especialmente paulistas) que viviam de produzir e vender filmes sem dinheiro público (o pessoal da Boca do Lixo), mais uma vez os políticos cedem à pressão dos cineastas mais engajados e inventam o modelo do “incentivo fiscal” para as artes em geral (em 1991), mas cujos maiores beneficiados serão, mais uma vez e durante cerca de uma década, os produtores de filmes. Ele, evidentemente, não vem sozinho: com ele está a inevitável “cota de tela”, a velha obrigatoriedade imposta por lei de exibir filmes nacionais mesmo que ninguém se interesse por eles.

Então, temos, de novo, um modelo todo construído sobre reserva de mercado e subsídio (no caso, disfarçado de renúncia fiscal cujos maiores montantes vêm – ou costumavam vir – de estatais e concessionárias de serviços públicos com recolhimento de IR). O resultado: o modelo dura somente até os próprios cineastas atolarem-se novamente em denúncias de desperdício, exaustão perante a opinião pública e uma constante de verbas insuficiente para atender a demanda crescente de mais e mais cineastas atraídos pela aparente moleza de produzir filmes sem arriscar o próprio bolso na operação.

Mais uma vez, o roteiro se repete: um modelo esgotado (no caso, o das leis de incentivo, que por sua vez substituíra outro modelo esgotado, o da Embrafilme) cede lugar a uma reformulação que, na verdade, altera a forma, mas não o conteúdo da política: vem a criação de uma agência reguladora (em 2001) para o setor que nada fará além de, basicamente, cuidar da reserva de mercado crescente e da transferência de recursos das mais variadas fontes e mecanismos para a produção e a distribuição dos filmes.

De novo, reserva de mercado e subsídio. Alguém imagina que tal modelo pudesse se sustentar?

Como que por alguma “mágica” envolvida em princípios da lógica mais elementar, o velho remédio no mesmo doente nas mesmas condições provoca o mesmo resultado: em um prazo até menor do que o esperado, o modelo dá sinais de saturação. Um mercado audiovisual transformado radicalmente pelo advento da difusão de conteúdo em outras janelas (notadamente, a TV por assinatura) faz com que um número cada vez maior de produtores de cinema com seus filmes debaixo do braço (afinal, há muito dinheiro público para muitas produções, mas a demanda de mercado não cresce nem de longe na mesma proporção) faça fila sem encontrar espaço para a exibição. Qual a resposta? Ampliar tanto a reserva de mercado quanto o subsídio, agora estendendo as políticas (fracassadas) que deram errado no mercado de salas de exibição para os canais a cabo (em 2011), repentinamente obrigados a exibir conteúdo audiovisual nacional (especialmente seriados). Mas como pagar para sustentar essa nova produção? Obviamente, com uma nova fonte de financiamento público (especialmente, o Fundo Setorial do Audiovisual, que por sua vez é abastecido com recursos do Tesouro e cobrança de uma contribuição chamada Condecine).

Então, vamos resumir até agora para o leitor não se perder: reserva de mercado e subsídio sempre assombraram o Cinema Nacional. Uma estatal (a Embrafilme) chegou a ser criada apenas para apoiar o setor sobre esses dois pilares invertebrados. O resultado: crise. A resposta para a crise? Mais reserva de mercado e subsídio através das leis de incentivo. E quando tal modelo também se esgota, qual a nova resposta? Mais reserva de mercado e mais subsídio. E de novo. E outra vez.

Não é preciso ser um estudioso do mercado audiovisual para constatar que tudo que se conseguiu intervindo no mercado permanentemente e sustentando toda uma cadeia produtiva baseada em reserva de mercado e subsídio foi… uma indústria cinematográfica incapaz de sobreviver sem, precisamente, reserva de mercado e subsídio!

Em qual capítulo desta novela estamos agora?

Com as rápidas transformações do audiovisual em todo o mundo e a crise dos canais fechados, o Brasil tem hoje uma comunidade ativa e gigantesca (ao menos em termos financeiros) de produtores de audiovisual que precisa escoar seus produtos. O espaço em salas de cinema e TV é limitado e possivelmente parou de crescer na proporção necessária para acomodar a oferta. O objetivo agora é ampliar a intervenção estatal para a web, taxando serviços como Netflix e obrigando também que o audiovisual nacional entre pela rede mundial mesmo que o interesse dos usuários seja pequeno ou mesmo não exista.

O que vem pela frente é, então, mais reserva de mercado e subsídio, pois uma vez que a demanda por audiovisual brasileiro é aumentada à força, o Estado precisa aparecer com fontes de financiamento para que tais produtos efetivamente sejam disponibilizados. Quem paga, como sempre, é o contribuinte e o espectador.

Alguém que está lendo este texto pode dizer: “Mas isto é assim em todo o mundo, o audiovisual é sempre protegido!” Bem, rebater tal afirmativa seria possível, mas num outro artigo. O que eu fiquei devendo foi falar sobre aquela que é, para mim, a verdadeira chave do problema.

Eu disse lá em cima que parece haver um fenômeno observado no Cinema Nacional que faz com que alguns filmes sejam bem-sucedidos dispensando a tal “ajuda” do governo. A resposta não é “São filmes aos quais o público realmente quer assistir”; a história está repleta de grandes sucessos populares de filmes subsidiados, como o próprio “Dona Flor…”, “Tropa de Elite” e tantos outros. Na verdade, desde a Chanchada até sua herdeira bastarda (a Pornochanchada), passando por Mazzaropi e Os Trapalhões, o filme (audiovisual) nacional que realmente pode funcionar é aquele “barato” – ou ao menos suficientemente barato para que sua capacidade de recuperar o investimento seja atraente ao investidor que não quer (ou não pode) ser subsidiado.

O audiovisual nacional é caro demais, tanto em termos absolutos quanto em termos relativos a seu potencial de mercado. O problema é, também, antigo. O excepcional sucesso de 1953, “O Cangaceiro”, teve dificuldades de recuperar o (alto) valor investido a despeito da bilheteria expressiva; em 1999, militantes do setor como Ivan Isola já admitiam que muitos filmes nacionais poderiam ser realizados por pouco mais da metade de seus orçamentos sem prejuízo da qualidade; em 30 de janeiro de 2013, uma extensa reportagem do Estadão abordava o problema crescente de produzir cinema no Brasil por valores tão altos. “Os nossos orçamentos estão quase o dobro dos argentinos e dos chilenos e mais caros do que os dos espanhóis”, diria Lucy Barreto, a decana produtora.

Num cinema tão caro, o aporte permanente de dinheiro público impede que os custos de produção diminuam naturalmente. Como não diminuem, investidores dispostos a arriscar seu próprio dinheiro não se interessam pelo negócio. Sem a entrada de tais investidores no setor (caros demais, os filmes nacionais são incapazes de dar lucro), a dependência do dinheiro público prossegue, realimentando o ciclo.

Enquanto o problema for confortavelmente deixado de lado pela comunidade cinematográfica (por motivos que dariam outro texto), continuaremos assistindo a este patético espetáculo de uma indústria dependente de reserva de mercado e injeção de dinheiro público implorar rotineiramente por mais reserva de mercado e subsídio para superar os problemas causados por… reserva de mercado e subsídio!

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