Colocar mais de um bilhão de reais anuais do dinheiro dos pagadores de impostos na indústria cinematográfica nacional deveria, supostamente, tornar os filmes “melhores” e o mercado mais “bem adaptado” ao conteúdo produzido por aqui, correto? Errado!
“Estamos num refluxo doloroso para quem faz filmes”, lamenta-se o ator e diretor Carlos Alberto Riccelli, em entrevista ao Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo em 16 de junho. A palavra “refluxo” é usada também pelo crítico e entusiasta Luiz Carlos Merten. Em outro momento da mesma matéria, ele admite: estamos numa “época de penúria para os filmes brasileiros”. A cineasta Tata Amaral, por sua vez, alega que estamos vivendo um “processo de colonização violento” para justificar mais um ciclo de crise para os títulos nacionais.
Na verdade, a amarga constatação dos militantes do setor dissocia totalmente causa e efeito. É evidente que um setor da economia desenhado para depender integralmente de subsídio e regulação jamais será algum tipo de “indústria autossustentável”. De fato, o sistema inteiro não foi elaborado para que se atingisse, num futuro qualquer, a fantasiosa autossustentação: ele foi pensado e é mantido para defender a comunidade que se nutre do próprio sistema fracassado.
O cinema nacional é um museu de grandes novidades. Culpar a “colonização”, como tenta pateticamente a diretora paulista, é piada velha: tal discurso estabelece sua forçada legitimidade ainda na ditadura Vargas e persiste como uma praga a ponto de convencer os militares a criarem uma fantástica fábrica de abacaxis vermelhos (a Embrafilme), sob o temor primitivo de que Hollywood dominaria mentes brasileiras até eliminar qualquer traço de “brasilidade” nas telas. Hoje, estas estão repletas de uma suposta “brasilidade”, mas as cadeiras estão vazias, ou porque os espectadores brasileiros não reconhecem sua imagem, ou porque simplesmente não se importam.
A indústria dependente e, nas palavras dos próprios ativistas, vivente em “penúria” a despeito dos bilhões despejados nela ao longo das décadas, é hoje uma verdadeira máquina de queimar dinheiro do contribuinte em produções que ninguém quer ver. Como ninguém quer ver, tais filmes fracassam continuamente, e esse fracasso é usado para justificar mais um pouco do remédio inócuo: regulação e subsídio, regulação e subsídio…
O modelo perverso comporta uma crescente comunidade que se confunde entre a profissão e o ativismo político de esquerda, mas que pode converter-se de uma hora para outra em simplesmente “pró-governo” para não deixar fechar os canais por onde jorra o dinheiro estatal que mantém o sistema em funcionamento. Não são apenas cineastas: no balaio cabem também críticos, agitadores culturais, “coachs” e “estudiosos” do mercado, regularmente reunidos em inumeráveis seminários, workshops, “rodadas de negócios” com produtores estrangeiros, todos maquiavelicamente planejando como tirar mais e mais dinheiro de um estado falido para enfiar numa indústria falida que só é vantajosa para eles mesmos.
Sem perceber, Tata, Merten e Riccelli descortinam a origem do fracasso desse modelo: a cineasta fizera uma minissérie (“Trago Comigo”) sobre a “ditadura militar” para a TV (pública) Cultura há alguns anos atrás. Como ninguém viu, outro alguém decidiu que valia a pena investir mais na ideia e agora o mesmo produto é relançado em filme, desperdiçando ainda mais recursos num processo que sequer deveria ter sido iniciado. Merten por sua vez cobra que o debate sobre o regime militar seja inserido no currículo escolar (como se não se falasse de outra coisa há 30 anos) e conclama o público a “lotar as salas” para assistir, finalmente, um filme brasileiro cujo tema simplesmente ninguém (além dos próprios cineastas brasileiros e seus asseclas) aguenta mais. Detalhe: a própria Tata Amaral já fizera antes outro filme sobre a indefectível “ditadura militar”, solenemente ignorado pelo público (“Hoje”).
Claro que o produto será ignorado nos cinemas (como já foi, antes, na TV) e claro que este novo insucesso projetará Tata Amaral e seus colegas a repetirem a dose, cobrando no final mais apoio da sociedade e culpando finalmente algum agente estrangeiro pelo fracasso generalizado.
Em resumo: a cineasta faz um longa-metragem sobre o tema (“anos de chumbo”). O filme não faz sucesso. Ela retoma o tema em uma minissérie de TV: a minissérie também não faz sucesso. Ela converte a minissérie em um novo longa-metragem para lançar no cinema. Se der errado de novo, a culpa é do público (ou da colonização, tanto faz). Nada impede que ela tente uma quarta vez: o dinheiro não é dela, afinal.
Hoje, a mesma classe que tornou a indústria de cinema no Brasil insustentável por definição volta suas garras para a televisão. Em poucos anos, também esta será inteiramente dependente de subsídio e regulação para parar em pé. Outras Tatas e Mertens lamentarão sua sorte e, quem sabe, praguejarão mais uma vez contra os militares (os mesmos aos quais eles devem a invenção da Embrafilme), contra a Globo (que os apoia incondicionalmente) e contra o capitalismo (dentro do qual eles desfrutam de privilegiada condição).
“Vamos continuar insistindo”, resume um Riccelli pesaroso (ele mesmo diretor de outro filme nacional fracassado, “Um Amor em Sampa”), como se produzir com dinheiro dos pagadores de impostos fosse uma espécie de fardo que a sociedade os obriga a carregar. “É ainda um modelo que exime o produtor de toda e qualquer responsabilidade e que a resposta do mercado não seja levada em consideração”, admite por sua vez Hector Babenco, outro legítimo representante da comunidade, em entrevista ao portal UOL em 1º de março de 2016. Mas e daí? Enquanto houver buraco, estaremos nos enfiando, para não contrariar o orgulho e os devaneios da classe cinematográfica brasileira: esta não tem nada a “Temer”.