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Por que as novelas e séries brasileiras são privadas, mas o cinema é praticamente estatal?

Não é difícil compreender por que já há mais de três mil signatários na carta dos profissionais da indústria audiovisual em apoio a Dilma Rousseff e contra seu impeachment, a despeito de haver entre eles “policiais militares”, “donas de casa” e “ecossocialistas”.

O audiovisual tem sido tratado como questão de estado no Brasil há mais de meio século, mas os mecanismos de fomento (ou seja, de transferência de dinheiro do contribuinte para o bolso dos militantes do setor) e reserva de mercado sofreram um sensível incremento durante as administrações petistas no governo federal.

Ao menos no caso específico do audiovisual, o pretexto para intervenção estatal nasce de uma premissa falsa: a suposta necessidade de proteger o “conteúdo nacional”. O equívoco (voluntário, na verdade) reside no fato de que, com ou sem ajuda do governo, tal conteúdo tem estado presente e disponível para a população ao longo do tempo. O exercício retórico consiste, por sua vez, em considerar audiovisual apenas aquilo que interessa ao grupo de pressão em determinada circunstância.

A dramaturgia filmada realizada pelos brasileiros é um sucesso na forma de telenovelas e mesmo filmes aceitos pelo público, e isto é um dado histórico incontestável. Ninguém perderia seu tempo defendendo reserva de mercado para novelas como “Roque Santeiro” e “Vale Tudo” ou para campeões de bilheteria como Os Trapalhões e Mazzaropi, que lotavam as salas de cinema durante a década de 1970. Oriundas da Boca do Lixo paulistana, produções de gênero e ingênuas comédias adultas sobreviviam por conta própria devido a uma inteligente e econômica proposta de produção. As novelas sempre estiveram disponíveis ao público em modalidade gratuita, em TV aberta, e os filmes de apelo popular não foram impedidos de ser exibidos em salas de cinema – muito pelo contrário, estes foram predominantes em diversos momentos.

Logo, quando se fala de reserva de mercado e subsídio para o audiovisual nacional, o que se está falando na verdade é em reserva de mercado e subsídio para o audiovisual que as pessoas não querem realmente assistir – ou não estão dispostas a pagar por ele.

O argumento predileto dos ativistas do setor é que os filmes nacionais, por exemplo, sempre encontraram dificuldade em chegar às salas de cinema, ocupadas prioritariamente pela produção estrangeira. Tal argumento reduz a questão a um dado mínimo que desconsidera o audiovisual brasileiro praticado na televisão e que, por razões culturais e de produção, venceu na forma da dramaturgia seriada de longa duração (telenovela), embora jamais tenham desaparecido os formatos menores, como especiais e minisséries. Logo, é falso o argumento de que o público não tem disponibilizado conteúdo nacional: ele tem, sempre teve e, por ironia, de maneira gratuita (em TV aberta). Então, a reserva de mercado e o subsídio estariam direcionados à produção paga oferecida em circuito exibidor (salas de cinema).

Mais uma vez, o ativista do setor tira uma fotografia (estática, o retrato de um momento congelado no tempo de um ângulo também limitado, que não permite ver o todo) para formular a partir daí a política pública de seu interesse. De fato, novelas são diferentes de filmes, mas neste caso em particular, a diferença que realmente interessa é que, ao contrário dos filmes protegidos e subsidiados, aquelas dependem da direta aceitação do espectador (consumidor) para existir, enquanto os últimos desprezam tal variável, uma vez que podem muito bem existir apoiados na coerção legal, ainda que sejam rejeitados no mercado. Além disso, a janela de exibição identificada como “theatrical” (salas de exibição) é cada vez mais um território restrito, não apenas para o Cinema Nacional como para todos os produtos diferentes das grandes produções de Hollywood, devido aos altíssimos custos de lançamento exigidos.

Em resumo até aqui: é falso (ou ao menos impreciso) dizer que o conteúdo nacional tem sido inacessível ao público, porque a dramaturgia de TV sempre esteve presente em modalidade gratuita. O mercado de cinema (salas exibidoras) representa apenas uma parte do mercado como um todo, e justamente aquela menos apropriada à produção realizada fora de Hollywood. Com a reconhecida convergência das mídias, diminui a importância formal da janela de exibição (ou seja, através de qual meio o conteúdo é oferecido) enquanto aumenta a necessidade de buscar e explorar outras janelas (no caso atual, a exploração do conteúdo por demanda – web – é a mais relevante delas por causa de seu amplo alcance e despesas relativamente baixas de lançamento).

Por casuísmo, o purismo de querer exibir conteúdo nacional em salas de exibição (conforme se disse, a janela mais complicada para o conteúdo nacional) vai a segundo plano quando se justifica que o audiovisual nacional ocupe também o mercado de televisão e até mesmo de vídeo por demanda (web). A regulamentação expande-se agora em direção às “mídias digitais”. Novamente, a ideia é impor ao público que pague (mesmo indiretamente) por um tipo de conteúdo que sempre esteve e continua disponível, gratuitamente, por sinal de TV aberta. É também por esse motivo que, crescentemente, a programação nacional dos canais fechados assemelha-se à dos canais abertos.

Talvez a consequência mais nefasta de tudo isso seja inflacionar o mercado, empurrando preços para cima sob pressão da injeção de dinheiro público num setor que poderia se virar muito bem sozinho.

Vejamos: um seriado, por exemplo, poderia ser produzido por um canal qualquer, utilizando sua estrutura e com controle de custos segundo a orientação financeira da empresa. Tal seriado jamais seria produzido com verba própria (privada) sem a necessidade e a perspectiva de sua aceitação pelo espectador (consumidor), sob pena de prejuízo financeiro (mesmo que indireto, na forma de baixa audiência). Tal circunstância, muito simples de ser compreendida, levaria a uma maior responsabilidade na gestão dos recursos e na busca por produtividade (produzir mais e melhor pelo menor orçamento possível).

Com a intervenção estatal na operação, motivada pelos falsos pretextos listados há pouco, o mesmo seriado será agora produzido de maneira terceirizada (ou próxima disso) usando verba pública. O canal é coagido por lei a oferecer conteúdo nacional (protegido). O produtor audiovisual chamado de independente para os fins da legislação (porque não está diretamente ligado a um canal de TV) conta com inumeráveis mecanismos que permitem usar verba estatal para produzir. O canal então “terceiriza” a produção, por um custo total muito mais alto (afinal, o dinheiro não será mais privado, mas público a fundo perdido, tornando virtualmente impossível perder dinheiro com a produção), garantindo em troca a exibição em sua grade. O resultado resumido: o conteúdo nacional que seria viabilizado com recursos privados, por um custo total X, com o claro objetivo de gerar satisfação no consumidor (espectador) pode agora ser viabilizado com recursos públicos, por um custo total maior que X (em alguns casos, muitas vezes maior que X, uma vez que a lucratividade da operação pode ser garantida, burocraticamente, antes mesmo de o produto ser disponibilizado no mercado), sem qualquer preocupação com a satisfação da audiência.

Agora, expanda o conceito, mantenha a prática por muitos anos e diferentes governos, e o que teremos é uma alta expressiva no custo de produção do audiovisual, sem qualquer ganho de qualidade ou competitividade internacional decorrente.

Tudo, repetimos, porque se partiu de uma premissa incorreta ou demasiadamente redutora em relação ao problema.

O atual estado de coisas é mantido porque a pressão do grupo interessado (na verdade, uma elite expandida dos produtores independentes de cinema e TV) é muito forte e a maioria dos políticos (ora por demagogia, ora por ignorância em relação ao tema) teme ser acusado de obstruir a disponibilização de conteúdo brasileiro para o “povo”. O que nos leva a um contexto sui generis, conforme descrevo a seguir.

O audiovisual brasileiro vitorioso, na forma de novelas, séries, documentários de teor informativo (e mesmo filmes com grande aceitação) está à disposição do público, que pode ter acesso a ele, não raro, de forma gratuita (em sinal aberto). Por pressão daquele grupo, o audiovisual brasileiro inviável (porque muito caro ou desinteressante para a população) torna-se uma obrigatoriedade subsidiada, mas é disponibilizado, habitualmente, em modalidade paga, em sala de cinema, TV de sinal fechado ou – brevemente – por demanda em streaming (web). Sintetizando: o “bom audiovisual” nacional é gratuito, mas pelo “mau audiovisual” é preciso se pagar duas vezes.

Traduzido em números, o contexto torna-se ainda mais estapafúrdio. Como o conceito de “audiovisual” não é estático, mas bastante dinâmico, materializado em diferentes formatos e meios, ele está presente em pelo menos um canal exclusivo para conteúdo nacional (o qual oferece também jornalismo), a TV Brasil, além de toda a produção escoada nas outras janelas. Foram, segundo se noticia, ao menos seis bilhões em investimento governamental desde sua criação (em 2007). Lá está, tipicamente, o conteúdo nacional subsidiado que ninguém queria ver. A Condecine faz recolher ao menos um bilhão anual do setor de telefonia móvel, dinheiro que abastece o Fundo Setorial do Audiovisual. Sob a forma de leis de incentivo fiscal como Audiovisual e Rouanet (esta, menos expressiva para a indústria), são mais centenas de milhões de reais todos os anos. Isso sem contar as verbas públicas em âmbito estadual ou municipal que acabam por se somar às verbas federais de fomento ao audiovisual nacional. Uma realidade que tem perdurado há mais de uma década e que faz do setor, no Brasil, o mais protegido do mundo, especialmente se levarmos em conta os resultados obtidos. Não existe nenhuma outra cinematografia tão subsidiada durante tanto tempo com resultados tão inexpressivos, sem ignorar que o país enfrenta graves problemas sociais (muitos deles decorrentes especialmente do excesso de gastos do governo).

É comum entre os militantes do setor alegar que o audiovisual é protegido e subsidiado em todos os países do mundo onde existe uma indústria cinematográfica atuante. A afirmativa desconsidera ou escamoteia detalhes importantes e que fazem toda a diferença. Vamos nos concentrar em ao menos quatro deles.

O primeiro é que, em países onde o audiovisual também é bastante protegido e, especialmente, subsidiado, ou a indústria de cinema já era forte independente da ajuda do governo, ou a dependência é, na prática, menor. Por exemplo: o cinema francês, infinitas vezes mais relevante e bem sucedido que o brasileiro, já era sólido e um sucesso internacional a despeito da intervenção estatal (não raro, tal intervenção mais atrapalha que ajuda). O desaparecimento do apoio estatal não impediria que o produto “filme francês” continuasse encontrando demanda natural em todo o mundo – não é demais destacar, contudo, que os filmes franceses antigos eram mais relevantes que os recentes, produzidos sob tutela direta do governo.

O segundo é que, em termos absolutos, o dinheiro destinado a cada produção em outros países costuma ser menor que no Brasil. Na Dinamarca, por exemplo, hoje berço de uma cinematografia prestigiada e de enorme êxito internacional, a regra é respeitar um teto de subsídio individual que não ultrapassa meio milhão de dólares. Por aqui, é hábito ultrapassar em algumas vezes esse valor com recursos de origem pública.

O terceiro é que, via de regra, o peso do dinheiro dos pagadores de impostos em cada produção é muito maior aqui que nos países europeus, por exemplo. Se um filme nacional pode ser viabilizado em até 90% (ou algo próximo a isso) com recursos públicos de diferentes fontes, filmes estrangeiros subsidiados costumam compor seu orçamento com pré-vendas, empréstimos bancários, coproduções com outros países e dinheiro privado, respondendo a verba do governo por apenas uma fatia do complexo bolo elaborado para se chegar ao orçamento total. Isso decorre de um fato que é naturalmente aceito dentro da indústria: é melhor cada investidor pulverizar seu dinheiro em diferentes produções (aumentando a chance de que pelo menos uma entre elas dê retorno) que concentrar integralmente em uma única produção (a qual, se fracassar, levará a uma perda significativa do investimento).

O quarto, mas não menos importante detalhe, é que, no Brasil, o processo de produção em si (e não a comercialização do produto final) virou um verdadeiro modo de vida para a comunidade cinematográfica, tornando possível – e não raro, costumeiro – que um cineasta engate o próximo filme sem ao menos ter lançado o anterior, porque sua possibilidade de levantar novo orçamento com recursos públicos independe de desempenho anterior de bilheteria. Nos outros países onde a indústria é protegida e subsidiada, há uma relação direta e objetiva entre captação de recursos futuros e êxito passado, “detalhe” que por aqui é relegado a um plano bastante secundário.

O caso canadense é altamente revelador em relação a isso. Um país muito rico, população escolarizada, hábitos culturais rotineiros e uma vasta legislação de fomento ao cinema. O resultado pode ser medido pelo próprio leitor: quantas vezes você decidiu assistir a um filme por ele ser “canadense”, da mesma forma que optamos muitas vezes por um veículo, por um vinho ou por relógio devido a sua procedência? Possivelmente, você jamais saiu de casa para ver um filme por ele vir do Canadá. A indústria cinematográfica canadense, subsidiada e regulamentada, é apenas um apêndice operacional da norte-americana, cujos produtores são atraídos, entre outras coisas, pelas vantagens públicas oferecidas pelo território vizinho. O “conteúdo audiovisual canadense” mantém-se próximo da irrelevância e convive com a intervenção estatal que parece servir mais ao estrangeiro que ao nativo.

No caso da indústria norte-americana, é curioso notar que os incentivos públicos costumam vir em âmbito estadual, da parte de unidades federativas mais pobres, e que há grande controvérsia a respeito de sua conveniência, uma vez que estudos indicam ser mais vantajoso para as economias locais estimular os ramos de hotelaria e turismo que atrair produções cinematográficas para seus territórios através de subsídio. A população, por sua vez, tem rejeitado a ideia de que o dinheiro de seus impostos termine invariavelmente pagando o cachê de milionárias estrelas hollywoodianas.

Tudo isso, sem esquecer, evidentemente, que para muitos a intervenção é errada e infrutífera por si só, e um estado mínimo (ou bem gerido de alguma forma) tem certamente mais prioridades que destinar recursos aos cineastas nacionais.

Ao alegar que é impossível produzir audiovisual sem subsídio porque os custos são altos demais, o ativista do setor não percebe (ou, ao menos, finge não perceber) que inverte causa e efeito. Os custos são tão altos porque o mercado não é livre e, portanto, a concorrência não funciona como deveria. O fim do subsídio à indústria e a desregulamentação do setor levariam a uma verdadeira revolução na forma como os filmes e seriados nacionais são concebidos, produzidos e distribuídos. Imediatamente, projetos estapafúrdios, com custos impossíveis de serem recuperados, seriam abandonados ou reformulados, visando a aumentar sua atratividade tanto enquanto investimento, quanto como produto final para o consumidor. Maus produtores abandonariam o setor, com o fim da grana fácil resultante de acordos e contatos junto ao poder público, elementos que, hoje, são determinantes para a sobrevivência. O audiovisual nacional deixaria de desconsiderar o mercado externo como fonte imprescindível de receita, em vista da necessidade de recuperar o dinheiro investido, o que o tornaria também mais bem posicionado em relação às tendências artísticas internacionais. Seria o ocaso de toda uma cinematografia que expressa interesses particulares de uma elite esquerdista, embora quem financie a farra seja o contribuinte burguês cujos valores são outros. Os salários da indústria também passariam a ser relacionados a desempenho e produtividade, o que não acontece hoje.

O audiovisual nacional não evoluirá, contudo, enquanto os políticos continuarem respaldando essa fantástica fábrica de gerar prejuízo. É devaneio esperar dos cineastas brasileiros um surto de libertarianismo austríaco. Hoje, o produtor que abre mão do subsídio público não sobrevive, ou simplesmente desiste de produzir. Após entrar na ciranda das verbas estatais, basta a ele manter-se ativo diante das fontes de recursos públicos, os mesmos que garantem sua lucratividade independente de sua competência (ou falta dela). Ninguém rejeitará o alimento farto que o mantém vivo. A mudança precisa vir de cima para baixo.

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