Na cabeça do novo prefeito de São Paulo, João Doria, pichadores só saem à noite depredando propriedade alheia porque lhes falta um curso de desenho. Basta que alguém lhes dê pincel, tinta e uma tela em branco, e eles ficarão em casa pintando palhaços chorando, retratos de Charlie Chaplin ou cavalos pegando fogo. Da mesma forma, basta dar aos grafiteiros algum “reconhecimento” (preferencialmente financeiro) e eles abandonarão suas “intervenções urbanas” e serão docilmente incorporados ao circuito chique das artes plásticas, trocando a adrenalina do asfalto por overdoses de prosecco em vernissages na Rua Estados Unidos. Da mesma forma, Doria provavelmente imagina que funkeiros e cantores de hip hop engajado só fazem barulho às duas da manhã porque nunca ninguém lhes deu um violoncelo; basta, então, que alguém lhes dê o instrumento e eles começarão a tocar em suas comunidades, nas ruas, nos museus, para deleite da elite paulistana.
Doria pensa tudo isso porque não entende a cultura da mesma forma que todos esses “agitadores culturais”, os quais, em sua mente, serão adestrados e incorporados à cultura de salão da qual ele mesmo faz parte. Doria é um “eventista” e ele tenta impor essa visão de sociedade à cultura, um jogo totalmente desconhecido para ele. Para o prefeito de São Paulo, é possível simplesmente encaixar a cultura inteira numa pacote e depois servir à sociedade numa sucessão interminável de eventos cujo sucesso será medido em termos de “alcance”, “market share” e outros jargões supostamente adequados à resolução do problema.
Doria está enganado. Artistas de rua, cantores de rap e “agitadores culturais” são parte de algo maior e não é um mero detalhe que eles usem a rua e espaços públicos – preferencialmente sem autorização – para mostrar sua “arte”. Confrontar o espaço do outro e a “ordem burguesa” são determinantes nessa cultura que Doria imagina ser possível, como se disse, “empacotar”. A prefeitura pode lhes dar legitimidade, espaço, crachás, autorizações e até mesmo dinheiro – nada disso será suficiente para aplacar sua real motivação, que é manter em movimento um processo contínuo de substituição de todo um conjunto de valores (entre os quais o respeito à propriedade privada) por outros, cultivados no imaginário socialista que, para alguém como Doria, não passa de uma caricatura a ser vencida facilmente por seus dotes como gestor.
A maior evidência disso é que, pressionado pela mídia, ela mesma parte ativa do processo de substituição de valores, só resta a Doria pagar aos artistas de rua para que eles passem a seguir “certas regras de convivência” na cidade – o que se assemelha a ceder a uma chantagem. Contudo, esses mesmos artistas não gostam de avisar antes que tipo de desenho farão, o que conduzirá Doria a voltar ao ponto onde tudo começou. Caso um grafiteiro desenhe Stalin ou Pol Pot (o que ocorrerá, cedo ou tarde) depois de receber um cachê pago pela própria prefeitura, Doria será obrigado a consentir (e, assim, um pouco mais do conjunto de valores que ele deveria supostamente defender irá embora) ou confrontar, assumindo novamente o protagonismo “autoritário” que tinha no início e desperdiçando todo o esforço e verba. Apenas o novo programa “Museu de Arte de Rua” custará 800 mil reais por edição – e, dessa vez, dinheiro dos pagadores de impostos.
Em ambos os casos, a esquerda vence. Como a esquerda está em permanente estado de mobilização social para a implantação da socialismo (seja pelas armas, seja pela degradação das instituições, seja pela corrosão diária dos valores), a única forma de enfrentá-la é, de fato, enfrentando-a e recusando-se a ceder espaço, reconhecendo-a como adversário político inconciliável (“se querem grafites, que vençam a próxima eleição!”, ele poderia responder, para delírio de seu próprio eleitorado). Mas não parece isso o que Doria está disposto a fazer.