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Uma proposta liberal para eliminar os abusos e democratizar a Lei Rouanet

Muitas pessoas gostariam de acabar com a legislação fiscal de incentivo à cultura porque enxergam no mecanismo uma fonte inesgotável de privilégio e manipulação de verbas. Embora a insatisfação seja legítima, é preciso tomar cuidado para não substituir algo ruim por outro ainda pior. Na verdade, toda interferência do estado no setor deveria ser eliminada: a existência específica daquele mecanismo desequilibra o mercado porque torna a vida de quem não o utiliza financeiramente inviável, funcionando como um atrativo inevitável a todos que atuam no setor: quem não usa as leis fica de fora e acaba desistindo. No entanto, hoje parece não haver ambiente político para uma retirada total das garras estatais da produção artística. Cabe trabalharmos com as condições dadas para converter o ambiente em uma realidade mais atrativa ao empreendedorismo e que de alguma forma incentive a concorrência entre seus agentes.

Vamos considerar que todo dinheiro já arrecadado ou que possa vir a ser arrecadado como IR é público” para os fins deste raciocínio. Assim sendo, há duas maneiras de destinar recursos públicos para a atividade cultural: na primeira delas, um órgão da administração simplesmente pega uma parte do próprio orçamento e transfere para um produtor cultural; na segunda, o dinheiro não chega a entrar na conta do governo, sendo antes disso repassado a um projeto previamente aprovado.

Aqui, é preciso que se dissipe uma confusão que costuma permear o debate sobre o tema. Muitos dos defensores da legislação fiscal torturam a realidade para que ela confesse algo que não acontece, na prática (que é o que realmente importa). Eles dizem: “O dinheiro do incentivo não é público, ele sai da conta do patrocinador diretamente para a conta do projeto cultural”. Quanto a isso, há dois pontos que precisam ser considerados.

Em primeiro lugar, sempre que o governo abre mão de uma parte de sua arrecadação em benefício da cultura, por exemplo, por intermédio do incentivo fiscal, ele precisa compensar essa perda em outro setor, aumentando a cobrança ou subindo alíquotas, em nome inclusive da responsabilidade fiscal. Ou alguém imagina que, ao ceder cinco bilhões anuais para a Lei Rouanet, o governo corta valor equivalente de suas outras despesas? Dessa forma, o que aparece como benefício para alguns (artistas) acaba virando prejuízo para outros.

Em segundo lugar, a quantia repassada pelo patrocinador diretamente ao produtor de cultura e que será lançado como benefício na declaração de imposto de renda só poderia ser considerado “dinheiro privado” se sua destinação fosse de livre escolha do pagador de impostos, o que não acontece: ou ele recolhe o imposto, ou destina a um projeto previamente aprovado pela burocracia. Não pode manter os valores para si próprio, não pode investir em outra iniciativa (nem mesmo em um projeto cultural que não tenha passado pelo crivo do órgão estatal): o dinheiro, então, não é “dele”, mas apenas “está” com ele até o momento em que o estado resolver perguntar aonde ele foi parar. Além desses dois pontos, existe ainda o argumento interno à máquina, o qual alega (acertadamente) que toda verba que seria estatal, mas acaba ficando no bolso dos artistas por força da legislação de incentivo, poderia estar indo para setores que beneficiariam, em tese, pagadores de impostos mais vulneráveis e que não contam com o mínimo de contrapartida pelos tributos que recolhem (atendimento emergencial na rede estatal de saúde, por exemplo).

No caso específico da Lei Rouanet, o aborrecimento com o mecanismo de incentivo fiscal é compartilhado tanto pelos usuários da lei quanto por seus detratores. Os artistas incomodam-se em ter de obter das empresas o recurso de que necessitam: eles prefeririam poder contar com a verba diretamente repassada pelo estado (o Ministério da Cultura, no caso, ou um similar que assumisse suas funções). Os críticos da lei, por sua vez, muitas vezes confundem-se em relação ao funcionamento do mecanismo. É interessante deixar claro que obter aprovação de captação na lei não significa ter dinheiro garantido, mas a possibilidade de conseguir o dinheiro de uma empresa antes que esta recolha seu imposto de renda devido. Ou seja: a mera aprovação não garante a verba, somente o potencial de sua integralização.

Este é o primeiro dos alegados “defeitos” da Lei Rouanet atual e é onde os liberais precisam tomar muito cuidado. Há uma forte tendência em reformá-la (notadamente sob o nome ProCultura), mas tal reforma parte dos artistas diretamente interessados, então é natural imaginar que ela espelhe o interesse mais distante daqueles que, inclusive, gostariam de ver a Rouanet extinta. Vamos abordar agora cada um desses pontos.

Como se disse, a primeira crítica que se faz à Lei é a de que ela “transfere” o poder de decisão para as empresas privadas. Embora formalmente seja possível compreender o motivo da reclamação, ela não expressa fielmente o que acontece porque a maior parte das verbas não vem de empresas totalmente privadas, mas de sociedades de economia mista (como bancos públicos) ou concessionárias de serviços públicos, muitas delas controladas indiretamente por representantes do governo federalno troca-troca habitual que perverte as relações entre estado e empresariado no Brasil. Se mantivermos tal item, ainda existirá a possibilidade de que uma empresa com capital totalmente privado e que não tem entre seus controladores nenhum representante do poder público continue escolhendo qual projeto pretende patrocinar. Se tal item for modificado e a decisão ficar concentrada no órgão decisório (o MinC, por exemplo), a destinação das verbas passará a ser integralmente política. Portanto, de uma perspectiva liberal, este ponto não deve ser modificado.

A segunda crítica é a de que o dinheiro da Rouanet acaba indo para projetos milionários, sertanejos de Lamborghini e celebridades de TV que não precisariam usar tais recursos. Tal objeção é correta, mas as propostas apresentadas para corrigir a distorção estão equivocadas. 

Há basicamente duas maneiras de enfrentar tal problema: a primeira delas á a habitual solução burocrática, pela qual se aumentam as regras e restrições de modo que a seleção dos projetos filtre (através de critérios supostamente objetivos) aqueles que ocasionalmente “não merecem” receber verbas públicas. O problema desta solução é que, como se pode facilmente imaginar, não é tão simples determinar quais são esses projetos. Um exemplo: como definir qual ator de TV é suficientemente “famoso” de modo que se torne impedido de obter recursos públicos para sua peça de teatro?

Além disso, é preciso lembrar que, ao aumentar as exigências formais e pré-requisitos a serem cumpridos por cada projeto, são prejudicados exatamente os produtores com menor poderio econômico, que em geral não contam com estrutura necessária para ficar cumprindo pesados encargos burocráticos. Quanto mais simples for o processo de aprovação e funcionamento da lei, mais democrático ele será: quanto maior o número de regras e formulários a serem vencidos, mais restrita será aos produtores poderosos.

A segunda maneira de enfrentar aquele problema é exatamente a mais simples e realmente objetiva: estabelecer um teto universal baixo de captação individual para cada projeto e um número máximo (também baixo) de projetos por produtor. O que os projetos que não deveriam usar a Lei Rouanet têm em comum são duas características: a primeira é seu potencial de lucro. Restringir a aprovação baseado neste item seria contrassenso, uma vez que é a possibilidade de lucro que fará com que o projeto torne-se eventualmente autossustentável no futuro. A segunda é a quantidade de dinheiro necessária para realizar o projeto. Ao estabelecer um teto absoluto para todos os projetos, afastam-se imediatamente os oportunistas, os desperdiçadores de verbas, os desviadores. Este teto poderia ser, por exemplo, 100 mil reais, um valor baixo para grandes projetos (os quais, deste modo, desistiriam de usar a lei ou de basear seu orçamento na lei), porém mais do que suficiente para viabilizar uma infinidade de atividades culturais, especialmente aquelas aparentemente desprotegidas. Seria uma forma automática de retirar a lei do colo dos astros da MPB, mas garantir que a banda de garagem, o curta-metragem, a impressão do livro ou a escola de balé da cidade do interior continue podendo ser viabilizada.

Tal limite resolveria automaticamente dois problemas – preservaria todos os projetos pequenos e eliminaria do jogo os projetos grandes. Sem complicadas artimanhas burocráticas, sem aumentar a papelada, sem dar margem a grandes interpretações. Simples como deveria ser. Seu projeto cabe dentro desse teto? Excelente. Não cabe? Refaça seu orçamento, corte custos, seja mais produtivo, crie uma cooperativa da equipe ou levante o dinheiro que falta sem usar incentivo fiscal.

É previsível a reação dos produtores culturais a um limite global. Eles diriam: “Cada projeto é diferente dos outros, um filme tem custos diferentes de uma peça, que por sua vez não custa o mesmo que uma exposição, etc.”. Além de óbvia, tal constatação não invalida a proposta. Cada projeto poderia captar a verba que desejasse, contanto que fosse igual ou menor que o limite. Projetos mais baratos estariam, evidentemente, dentro do teto. Projetos mais caros poderiam ainda integralizar o valor necessário com outras fontes como empréstimos bancários ou investimento particular não incentivado. Globalmente, entretanto, a limitação forçaria o setor a melhorar sua produtividade e estimularia a criatividade na gestão dos recursos, além de conter a pressão para cima nos preços de fornecedores de serviços que atuam no mercado.

A terceira crítica está relacionada à segunda: acusa-se a Lei Rouanet atual de permitir a concentração do dinheiro captado no eixo Rio-SP. Tal concentração é facilmente compreensível, uma vez que é nesses dois estados onde estão tanto os mais ativos produtores culturais quanto boa parte das empresas com maior faturamento. O problema, portanto, não é essencialmente geográfico e não é preciso estabelecer nenhuma leitura marxista para resolvê-lo. O problema está novamente nos tetos de captação e no limite de isenção fiscal para cada pagador de impostos (pessoa física ou jurídica).

Hoje, funciona mais ou menos assim: cada projeto tem um alto teto de captação (com projetos chegando a aprovações de milhões de reais), porém cada patrocinador (pagador de Imposto de Renda) tem um baixo limite de dedução (que não costuma chegar a 6% de seu imposto a recolher). O correto seria inverter ambos: baixar, como já se disse, o valor máximo de captação para cada projeto, e ao mesmo tempo subir o limite de dedução. Vejamos o que acontece hoje e como seria com tais modificações.

Como o limite de dedução é baixo, somente grandes empresas conseguem repassar quantias significativas para os projetos aprovados na Lei Rouanet. Isso incentiva os projetos milionários porque apenas os grandes produtores têm acesso a essas empresas. Por outro lado, um apoiador modesto de uma cidade do interior, por exemplo, dificilmente consegue por si só integralizar o valor necessário a uma iniciativa de sua própria região.

Com projetos mais baratos e um valor de dedução mais alto, afastaríamos os grandes projetos que não deveriam usar o mecanismo ao mesmo tempo que incentivaríamos e protegeríamos os projetos de regiões mais carentes, que poderiam obter o dinheiro necessário dos pagadores de impostos locais. A lógica da lei seria invertida e a distorção desapareceria.

A quarta crítica mais recorrente que se faz à lei é a de que o dinheiro é supostamente mal usado ou mesmo desviado. Tal mau uso permitiria que muitos produtores vivessem da mera captação e não dos resultados financeiros de cada projeto. Novamente, há maneiras diferentes de lidar com o problema. Vamos primeiro à resposta errada.

Aumentar os requisitos burocráticos e os “mecanismos de controle” acabaria protegendo exatamente os produtores com mais poder econômico. Uma infinidade de regras de prestação de contas exige que o proponente contrate profissionais apenas para cuidar disso, o que em geral é inviável a pequenas empresas. Além disso, quanto mais regras a serem fiscalizadas, maior a demanda do órgão público por pessoal especializado, de modo que a economia que se faz evitando ou punindo desvios acaba sendo prejudicada pelos crescentes gastos com esse controle. Gastam 100 para evitar a perda de 100. É muita energia mal utilizada.

Limites mais baixos por projeto enfrentariam esse problema de forma simples e direta, diminuindo também a discricionariedade. Além disso, o ideal seria dispensar o produtor de qualquer comprovação de despesas: seu único compromisso seria finalizar o projeto dentro do prazo acordado como num contrato simples. A fiscalização seria aberta a toda a comunidade: através de uma lista de projetos aprovados por cidade, cada munícipe poderia saber exatamente quem captou, qual quantia, quem patrocinou e em que data cada produtor terá de terminá-lo. Projetos ruins, onde o dinheiro público tenha sido visivelmente mal gasto, seriam repudiados pela sociedade e pelos próprios colegas, fazendo uma seleção natural baseada no mérito e não na discricionariedade de um servidor público.

Para a eliminar a “politização” do processo de escolha de projetos pelos patrocinadores, estatais, sociedades de economia mista e concessionárias de serviços públicos deveriam ser terminantemente proibidas de usar os mecanismos da lei.

Finalmente, a aprovação prévia deveria ser suprimida do regulamento da lei. Se o objetivo desta é incentivar que artistas produzam e que pagadores de impostos destinem uma parcela do que iriam recolher ao governo para projetos culturais, exigir que tais projetos sejam previamente aprovados pela burocracia torna o processo tortuoso, injusto e dispendioso para todos. Bastaria comunicar à comunidade qual projeto está sendo realizado, quem é o responsável legal por sua realização, qual será o valor total usado pelo mecanismo legal (sujeito ao teto), quem está patrocinando e qual o prazo para seu término.

Em 2015, o orçamento do governo federal reservou algo em torno de 5 bilhões de reais para a totalidade dos projetos. Desse total, pouco mais de um bilhão foi efetivamente captado. Hoje, o grosso do dinheiro acaba ficando concentrado num menor número de projetos mais caros. O limite de 100 mil acabaria com tal concentração. Se o governo estabelecesse como teto global de renúncia um bilhão de reais por ano, economizaria recursos e ainda poderia beneficiar 10 mil projetos espalhados pelo Brasil, uma média bastante satisfatória de quase 400 projetos culturais por estado da federação, contando apenas aqueles beneficiados pelo regulamento da Lei Rouanet (o que não inclui as iniciativas dos governos estaduais, e municipais, as totalmente privadas e a imensa maioria dos filmes e seriados que não dependem dessa lei, mas de outras, como a do Audiovisual).

Para gerenciar tais alterações no funcionamento da Lei Rouanet não seria necessário nenhum ministério. Um bom sistema online e um escritório com serviço de ouvidoria e aconselhamento técnico seriam mais do que suficientes para dar conta do trabalho – na verdade, esse apoio poderia facilmente ser oferecido por uma rede com a do SESC, atuante no setor cultural e amplamente difundida por todo o país. A verdadeira fiscalização ficaria a cargo da comunidade, especialmente a regional, que saberia quais projetos estão sendo colocados em prática em cada município e estado.

Ao ouvir a reivindicação habitual dos militantes do setor, exatamente quem faz da captação um meio de vida, Michel Temer frustra a população e perde a chance de reformar um mecanismo habitual para a iniciativa cultural. Este tem sido um patrocínio não das artes, mas do desperdício, do compadrio e da boquinha.

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