Doria não seria apenas mais um político legalista e com fixação mórbida por “arrecadação” se demonstrasse menos entusiasmo por aumento de alíquotas e novos fatos geradores. Mas ele é só mais um político, igual a todos os outros, ou seja: legalista e morbidamente fixado por arrecadação. Ele poderia se desculpar pela nova tributação: entretanto, regozija-se. Poderia cumprir a legislação, mas envergonhando-se, não o faz: está feliz, de peito estufado, pela firme convicção de que, no fundo, o “tributo é bom”.
Entretanto, a cobrança de ISS sobre a Netflix vai além do que o raciocínio pueril de Doria faz crer. Embora seja prefeito da maior cidade do hemisfério sul, o tucano raciocina assim: se o preço da cenoura aumenta, o comerciante repassa o aumento para o freguês. Mas como o comerciante no caso é “rico”, ele não precisa repassar o aumento para o freguês. Simples assim, não?
Não, Doria. A Netflix faz parte de um sistema de negócios bem mais complexo do que você imagina. A empresa não vende “cenouras”. Suas decisões têm nível estratégico, não estando confinadas a salas empoeiradas de repartições de secretaria de finanças. É evidente que um negócio bilionário como esse não precisa repassar o aumento da carga tributária diretamente para seu consumidor final. Ocorre, entretanto, que tal repasse será feito indiretamente – e de uma maneira ainda mais nociva, pois recairá não sobre o consumidor específico do serviço, mas sobre todos os outros contribuintes.
Para entender melhor como funciona o mercado audiovisual, é preciso em primeiro lugar duvidar do que dizem os “especialistas”, em geral, acadêmicos ou executivos comprometidos com o próprio esquema e que, embora saibam como as coisas realmente funcionam, não estão interessados em revelar tais meandros ao restante da sociedade.
A escalada vertiginosa dos custos para produzir filmes como os oferecidos pela Netflix tem empurrado cada vez mais os players do setor a contar com uma miríade de subsídios e proteções governamentais capazes de eliminar os riscos de se envolver no mercado e, preferencialmente, garantir a free bet: uma aposta onde não se perde nada e garantidamente se ganha sempre alguma coisa.
No caso específico da Netflix, não é repassando o ISS a seus consumidores que a empresa irá compensar o novo custo, mas sim atuando no sentido de contar com subsídios em outras esferas para suas próprias produções: o que compensará largamente o ISS exigido pelo arrecadador Doria. Convém lembrar que a Netflix já é participante do Conselho Superior de Cinema, órgão oficial e decisório, o que a aproxima cada vez mais do jogo político que domina o setor e que define regulação e distribuição de subsídios.
Exemplificando: se hoje a Netflix é obrigada a gastar 10 milhões de reais do próprio bolso para financiar uma série nacional, ela poderá brevemente “terceirizar” tal valor para uma produtora brasileira independente, que por sua vez usará dinheiro dos pagadores de impostos para cobrir tal orçamento. No caso, ambos os protagonistas ganham: a Netflix tem o produto novo a oferecer e a produtora nacional filma sem perigo de prejuízo. A garantia quem oferece é o estado, ou seja, o nosso dinheiro.
Sendo ainda mais claro: se o ISS tomar da Netflix uns 10 milhões de reais por ano, bastará à empresa deixar de investir dinheiro próprio em somente uma produção dentre as dezenas que fará ao longo do período, “terceirizando” o custo por meio de um dos inúmeros mecanismos de incentivo fiscal brevemente disponíveis a ela mesma. Ou seja: em apenas um projeto, o valor referente ao ISS será recuperado. Caso o ISS chegue a 50 ou 100 milhões, bastará multiplicar o número de projetos terceirizados, e assim por diante.
É ingênuo raciocinar como Doria, que não conhece nem compreende a extensão do mercado que está tributando e as consequências de tal tributação.
E como se pode afirmar tudo isso? Bem, já aconteceu antes. Quando há cerca de 15 anos as distribuidoras e exibidoras de cinema, bem como as antigas locadoras de vídeo, passaram a ser violentamente tributadas por título oferecido (pela chamada Condecine), houve um discreto movimento de resistência, rapidamente apaziguado por uma proposta governamental bem mais vantajosa, que poderia ser traduzida mais ou menos assim: “Veja, a partir de agora vocês recolherão tributos para sustentar a indústria audiovisual nacional. Sabemos que isso diminuirá sua margem de lucro, mas não se desesperem: criaremos mecanismos de subsídio e incentivo fiscal de modo a recompensar vocês pelas perdas. No final, todos sairemos ganhando porque o custo final total acabará coberto pelo pagador de impostos que mal sabe o que se passa”.
Hoje, os antigos “prejudicados” pela tributação no setor contam com inúmeros mecanismos disfarçados de “compensação” pela tributação e regulação do setor, de modo que ninguém – exceto o pagador de impostos desavisado – perca. Duvida? Procure no multiplex de sua cidade a plaquinha que revela por meio de qual mecanismo estatal de “incentivo” a sala foi construída ou mesmo reformada. Tal informação costuma estar presente na própria bilheteria do cinema.
A Netflix não é vítima, como tampouco o são as distribuidoras de cinema, as redes de salas exibidoras ou os canais de TV por assinatura: é mais um player poderoso de um jogo muito maior do que Doria conhece (quanto mais compreende). Ele é incapaz de perceber que, mesmo sem repassar o ISS diretamente a seus “fregueses”, o estrago está feito: em longo prazo, aumentamos a dependência de todo um setor do estado. Quem perde não é o consumidor de streaming, mas todos os pagadores de impostos (os quais em sua esmagadora maioria não contam com subsídios para desapertar o orçamento doméstico), obrigados a sustentar de ponta a ponta uma indústria cada vez mais cara e perdulária.
Culpar a Netflix, os órgãos reguladores ou mesmo os cineastas por tal estado de coisas é não querer enxergar o óbvio: pessoas e empresas sempre buscam soluções para lucrar mais e fazer melhores negócios. O real problema são eles, os políticos: legalistas, obcecados por palanque, controle e arrecadação. Enquanto eles não tiverem vergonha de vir a público defender que se “cobre dos ricos” – porque, afinal, eles “podem pagar” – nada irá mudar. E você – sendo ou não assinante da Netflix – irá pagar, quer queira ou não.